06/01/2011
Pedro Lima: “O surf pode ser um tubo de ensaio da própria vida”
Numa entrevista concedida ao sítio oficial da Federação Portuguesa de Surf, Pedro Lima, figura incontornável na história do surf em Portugal, abriu o livro.
Eternamente Jovem e dinâmico, ainda hoje, com 80 anos, não resiste a apanhar 'umas'. Lê com atenção os conselhos daquele que é considerado o primeiro surfista português.
SurfingPortugal.com – É considerado o primeiro surfista português, de que forma encara este “título”?
Pedro Lima – É de facto um grande privilégio ter ‘’descoberto’’ praticamente sozinho, primeiro o bodysurf, em 1946, depois o bodyboard e em 1959 o surf em pé na prancha. Descobrir, já é em si mesmo uma aventura; descobrir o surf foi um dos factos mais importantes de toda a minha vida desportiva. Assim mais do que um ‘’titulo’’ considero um grande privilégio ter sido o pioneiro em Portugal, dum desporto fantástico, fonte de alegria partilhada, de companheirismo e de auto-confiança e de ter influenciado tão positivamente os meus ‘’companheiros do mar’’. Ter sido o precursor aqui, de um movimento positivo e de uma maneira de estar na vida baseada na identificação com o Mar, com a Natureza e com a Aventura saudável.
SurfingPortugal.com – Como é que começou o seu interesse pelo surf?
P.L. – O meu fascínio, mais do que interesse, começou quando durante a 2ª Guerra Mundial, em 1945. Estando nos Açores, li um artigo numa revista americana mostrando o Duke Kahanamoku surfando uma grande onda na sua enorme prancha de madeira wili-wili . Tudo o que era ligado ao mar me fascinava, e já descera ondas em pequenos barcos de madeira que havia na ‘’linha do Estoril’’, movidos a pagaia, e que se chamavam ‘’charutos’’, além de fazer carreiras, navegando à vela com mar grosso, ‘’correndo com o mar’’ como se diz nos Açores, quando lá tirei Carta de Patrão de Vela. O meu grande progresso no conhecimento do mar começou a sério quando um primo meu me trouxe do Havai, a meu pedido, umas barbatanas (Churchill Swim Fins) que eu também vira anunciadas em 1945 na revista americana e que eram totalmente desconhecidas em Portugal. No Havai, eram associadas à caça submarina (ainda com arpão manual) e não ao bodyboard, como veio a acontecer 30 anos depois. O meu body surf com barbatanas evoluiu fantasticamente, permitindo a minha entrada para o mar com ondas muito grandes e no fim de 1946 lembrei-me de utilizar uma prancha com 1 metro de comprimento que me trouxeram do Alentejo, tal como saíra do sobreiro…
Em 1947 já descobrira o ‘’angling’’ na onda, e possivelmente eu e o meu grupo de então, em Carcavelos, teremos sido os precursores do body surf na Europa.
SurfingPortugal.com – Como era este desporto naquela altura?
P.L. – Em Portugal, no início da década de 50, não havia informação e muito menos material de surf. Eu continuava fazendo o meu bodyboard ‘’intuitivo’’ (em 1948 começara também a fazer caça submarina) e não havia mais ninguém a praticar, na linha do Estoril e Guincho, Ericeira e Peniche, para onde ia mergulhar. Em 1956 comprei uma prancha oca, de madeira, com 3 metros. mas que não tinha fin, num importador de material de desporto, que era chamada ‘’prancha de natação’’cuja finalidade era, de facto, remar deitado sobre ela. Levei-a para a Praia do Abano para finalmente me pôr em pé nela, tal como eu vira o Duke na revista, mas era impossível conseguir o take off pois sem fin, (que eu nem sequer sabia que era necessário), a prancha atravessava-se imediatamente na onda e eu caía. Só em 1959, soube que o surf chegara à Europa, a Biarritz, e que havia uma fábrica – a Barland que já as produzia. Assim no regresso duma estadia de ski nos Pirinéus, consegui comprar finalmente a minha primeira prancha de surf, com 10 pés de comprimento, 23” de largura e 16 kg de peso e com um fin!!! Tive de voltar a Biarritz para saber o que era necessário fazer para não escorregar na prancha e cair, cada vez que me punha em pé. Um surfista americano, solitário, que encontrei na Plage des Anglais fez luz no meu espírito, quando à minha pergunta me disse ‘’man get a piece of wax’’ e me estendeu uma placa de parafina e ele próprio a espalhou no deck da minha prancha, mostrando como se fazia, com a solidariedade bem própria da época. Nesse momento, com um sol radioso e um mar glassy com ondas de metro, consegui fazer o meu primeiro ride em pé, e experimentar a grande alegria que esse simples acto nos traz! Após cerca de nove anos anos a surfar sozinho em Portugal e com idas a Biarritz e a La Barre que tinha grandes ondas e alguns locais e alguns americanos que vinham da base aérea de Frankfurt, fui aprendendo a sair com grandes ondas, a fazer bottom turns radicais, e a atrasar na onda para entubar. Em 1967 e 1968 tinha já alguns amigos portugueses que começaram a surfar comigo, e a encontrar ingleses e americanos que iniciavam a exploração das nossas ondas. Com esse amistoso convívio, foi-se melhorando a técnica e obtendo a capacidade para surfar grandes ondas. Com a repressão das autoridades que durante o Verão dificultavam a saída para o mar em dias com ondas, a ponto de ter sido preso várias vezes ao regressar a terra, só conseguindo resolver o problema porque os banheiros intercediam por mim, mencionando que eu já tinha salvo vários banhistas em dificuldades, comecei a procurar praias selvagens na costa do sudoeste, e a ir para Marrocos. Quando escrevi o primeiro artigo sobre surf na imprensa portuguesa, em 1969, no Século Ilustrado, o surf era desconhecido ainda, e quando afirmei que seria um desporto que acabaria por ser muito divulgado em Portugal, houve leitores que escreveram dizendo que Portugal não tinha ondas para surf…
SurfingPortugal.com – Desde que começou no surf até agora, quais as principais mudanças que notou?
P.L. – Quando comecei, o surf era um desporto de movimentos instintivos, que íamos aperfeiçoando também instintivamente, o que originava uma inconsistência dos resultados técnicos obtidos. A minha busca era essencialmente da capacidade de surfar ondas cada vez maiores, mais do que fazer manobras que muitas vezes reduziriam a velocidade. Hoje, com o estudo da motricidade dos movimentos do surf, consegue-se uma técnica profunda e consistente que permite manobras cada vez mais elaboradas e repetidas com garantia de sucesso. É a evolução do ‘soul surf’, do surf emoção, para o surf de competição, muitas vezes em pequenas ondas, nos locais pré estabelecidos para os campeonatos. A espectacularidade é, na maioria dos casos, mais baseada na técnica das manobras, do que no tamanho das ondas.
SurfingPortugal.com – O que é que o surf mudou na sua vida?
P.L. – Permitiu-me a ultrapassagem de uma quantidade de limites pessoais e o encontro comigo próprio. É além duma fantástica fonte de alegria e bem estar, a possibilidade de praticar o desporto mais violento que existe, sendo contudo o mais pacífico, pois a luta não é contra pessoas, mas só contra o mar. É um desporto que desenvolve a coragem com humildade, o estoicismo e o companheirismo, qualidades humanas fundamentais para ter auto-confiança e auto-estima, estando bem consigo próprio e com os outros. Ajudou-me a encontrar, ao longo da vida, uma quantidade de amigos com afinidades tão fortes como são o gosto pela aventura e o viver intensamente cada instante.
SurfingPortugal.com – Acredita que esta modalidade pode ser uma mais-valia na vida dos praticantes? Porquê?
P.L. – Considero que na educação dos jovens, cada vez mais super protegidos pela família, não precisando de lutar para ter acesso às coisas, o surf funcionará como um ‘banco de ensaio’ da própria vida, desenvolvendo as suas capacidades físicas e mentais mais do que qualquer outro desporto, tornando-os capazes e bem consigo próprios. Desenvolve os músculos e a capacidade de controlar o medo e de ultrapassar o próprio cansaço, buscando recurso na ‘energia anímica’, quando a energia muscular já se esgotou.
SurfingPortugal.com – A elite do surf mundial conta já com alguns nomes portugueses. O que acredita ser necessário para se chegar a este nível?
P.L. – No surf de competição, o estudo e o treino exaustivos da sua motricidade, a persistência, a humildade em aprender e corrigir serão os caminhos essenciais para obter o necessário nível internacional, além de, à priori, ter visado o objectivo ‘surf mundial’ não se contentando com o confortável objectivo de ser ‘o melhor da sua rua’. Os exemplos são o Tiago Pires e o Hugo Pinheiro nas respectivas modalidades. Eventualmente assistidos por uma mais moderna, se possível, técnica de treino.
SurfingPortugal.com – De que necessita Portugal para dar um salto à frente quanto aos desportos de ondas?
P.L. – Precisamos de mais meios e mais competidores visando e trabalhando para um nível mundial, seguindo o ‘calendário das ondas’ pelo mundo fora, com adequada assistência técnica hoje presente em toda a alta competição internacional. Presumo que a nova cadeira de Surf na Faculdade de Motricidade Humana, possa trazer um grande contributo à técnica dos competidores portugueses, corrigindo exaustivamente os erros e insuficiências técnicas de cada um, aprofundando a técnica da modalidade.
SurfingPortugal.com – Qual a sua opinião dos Centros de Alto Rendimento para os Desportos de Ondas que estão a ser construídos e outros ainda em projecto?
P.L. – Espero que sejam um apoio efectivo à prática do surf local, e, em geral, tirando partido das ondas que temos e incentivando a nossa juventude a ‘participar’ nos desportos de mar, em vez de serem simples espectadores... Prevejo contudo que será simplesmente um apoio ao início do surf, não à alta competição. Contudo já será um bom começo, num País onde ainda há tantos jovens que nem sequer sabem nadar…
SurfingPortugal.com – Acha que a tecnologia, como as ondas artificiais, pode ser uma boa aliada do surf?
P.L. – Certamente que sim, sobretudo no interior, onde não há ondas…. Ou numa costa onde não são consistentes. Contudo, não há prazer como andar à procura de ondas grandes e perfeitas… e encontrá-las, num sítio bonito e selvagem. O surf deve ser uma de várias aventuras que lhe estão ligadas e de que faz parte.
SurfingPortugal.com – Ainda pratica surf? Que importância esta prática tem para si?
P.L. – Ainda pratico, agora essencialmente de Verão, mas como já não tenho remada para sair através de ondas grandes, por causa de lesões nos ombros que fiz numa avalanche de neve, fora de pista, perdi um pouco o entusiasmo, que era essencialmente para ondas grandes. Assim, faço wind surf todo o ano e para poder passar ondas maiores sem ter que remar, vou aprender kite surf, surfando depois para terra. De qualquer maneira, o mar e as pranchas, fazem parte integrante da minha vida de há 64 anos para cá…
SurfingPortugal.com – Continua ligado ao surf também noutras áreas, nomeadamente através da Lightning Bolt. É fundamental para si manter esta relação de proximidade com a modalidade e os atletas?
P.L. – Tenho com a Lightning Bolt uma forte ligação sentimental, primeiro porque Gerry Lopez, o seu criador, representa para mim o verdadeiro espírito de liberdade e de coragem do ‘Soul Surf’, do surfista das ondas gigantes de Pipeline, vivendo como ele dizia, ‘aqui e agora, a eternidade de cada instante, como quando se vai no tubo duma onda’. Depois, a ‘LB’ foi a primeira divulgadora e patrocinadora do surf em Portugal, não podendo esquecer que tive o privilégio de entregar ao meu neto Pedro, que comecei a ensinar a surfar com 6 anos, o seu primeiro troféu de surf , no campeonato ‘LB’ de Esperanças, ainda no tempo do saudoso Vince que incutia também ao seu team de então, o mesmo espírito de companheirismo e fair play que hoje continua a ser lema da marca, que além da competição, procura manter o espírito do ‘Soul Rider’, o explorador infatigável que procura encontrar-se a si próprio numa onda perfeita…
Há muito tempo que a Ligthning Bolt proporciona, como princípio, aos seus patrocinados, viagens à procura de ‘ondas exóticas’ para exactamente manter esse espírito de aventura e melhorar a técnica.
SurfingPortugal.com – Tenta adivinhar o que o futuro reserva para o surf?
P.L. – Tal como escrevi em 1969 no primeiro artigo que apareceu sobre surf em Portugal, prevejo que o surf continuará em expansão, como desporto de liberdade e de progresso pessoal, eventualmente até mais do que como desporto de competição, embora a competição seja, sem dúvida, com o inerente profissionalismo, uma razão para o seu constante desenvolvimento técnico. Todos temos de fazer um esforço para divulgar este fantástico desporto, mantendo a solidariedade que sempre deve existir, sobretudo nos desportos de mar de acordo com as minhas máximas:
‘Ensina os teus amigos a surfar, isso vai melhorá-los e a ti também’
‘Mantém vivo o espírito do surf, que é baseado em companheirismo. A luta deverá ser só contra as nossas próprias limitações’
‘A boa onda, somos nós que a fazemos’
Fonte: http://www.surfingportugal.com/index.php?opcao=35&id=1418
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